
Nany People saiu do interior de Minas Gerais com um colchão de espuma e um saco de viagem. No ônibus para São Paulo também estava a cara e a coragem de uma jovem de 20 anos. No currículo, um curso técnico em Laboratório de Análise Química Industrial – custeado por ela. Na carteira, pouco dinheiro que não chegava para pagar a passagem de volta. “Fui fazer a minha história baseada no que eu acreditava e até hoje é assim”, me disse durante entrevista para o Set Guaíba, trinta anos depois de ter deixado o lar (do qual falou com muito carinho).
“Quando você faz 50 anos, a metade da sua ampulheta já caiu. Então você descobre, com o tempo, que muita coisa você nem precisa fazer mais. Porque você pode, mas não deve ou se deve, não precisa mais. Você descobre que tem coisas que você não precisa fazer mais porque não vai te levar a nada. Quando você está com 50, você está de novo na puberdade. Quando você tem 14/15 você não é jovem nem criança, você está no umbral. Com 50 você não é jovem, nem velho. Você está no umbral. Então você não se deixa mais levar por canto de sereia”, disse.
A maturidade a ensinou a ser dona de si: “E eu faço o que eu quero. Isso é libertador. Quando você tem coragem de fazer isso você muda a rotação da vida. A vida só mudou de rotação quando alguém ousou contestar que não era daquele jeito. Acho que você tem que fazer com vontade, de verdade. Se não, não tem sentido”.
E sem essa de nostalgia… apesar de sua voz ser carregada de saudade ao repetir frases que sua mãe lhe dizia – “era muito sábia” -, Nany encheu a boca pra dizer que o melhor momento da vida é o agora. Dizia sua mãe que a vida é uma grande festa, que já está rolando quando você chega e que segue, mesmo quando você vai embora. Nesse grande baile, as pessoas desempenham os mais variados papéis: às vezes como garçom, depois como convidada, quem sabe até penetra ou mesmo ficando do lado de fora. “O que conta dessa festa são as valsas que você tem, as grandes evoluções que você tem, que te transportam para um lugar melhor”, lembrou Nany, que participou de sua primeira novela entre 2018 e 2019, em que os trinta capítulos previstos acabaram virando presença na trama do início ao fim.
“As pessoas vão ficando muito rançosas com o tempo. E a gente tem vivido tempos malucos em que as pessoas acham que tudo tem que ser na velocidade da fibra ótica.”
Foi a primeira novela de uma longa carreira batalhada. Televisão dá projeção. Novela dá ainda mais destaque. É inegável. Mas é importante lembrar que não foi “do nada” que ela chegou onde está. “A internet deixou as pessoas mal acostumadas de achar que tudo vem dos 30 segundos do Instagram. E não é verdade. É devagar que a vida dá certo. A vida dá certo com cada passo e um compasso. Fui fazer a primeira novela depois de 25 anos de TV. Só porque eu fiz uma novela que teve uma projeção muito grande as pessoas acham que do nada eu fui parar lá. DO NADA?! Mas aí tu cata a sacada da manga. Faço uma projeção de tudo que andei fazendo nos meus 25 anos de TV: começa lá no Goulart de Andrade na extinta Manchete, passa por Hebe, Amauri, A Praça é Nossa, reality, repórter da Xuxa, entrada na Globo e o último Pop Star. Então você vê que a vida é uma decorrência de percurso. Muita gente se surpreende. Quem me acompanhou e sabe da minha história com a Hebe, fica emocionado porque relembra o que viu. Quem não sabe, leva um susto”, relembrou Nany.
Nesse processo, fundamental a solidariedade, a boa vontade, ser verdadeiro e transparente. O universo devolve, ela diz. Mas tem que ter humor: “O humor escolhe a gente. É nato. De onde nasce o humor? Geralmente é de uma tragédia, de um fato que seria trágico e você olha com outros olhos. Você tem a cara de pau e a coragem de falar isso”.
Ela vai além. O humor alivia, ajuda e fortalece. “Até pra você passar por situações nada iluminadas, nada agradáveis. O humor é libertador porque te tira o telhado de vidro. E aí eu caio numa citação do [Bertolt] Brecht que dizia que ‘qualquer discurso pra ser pertinente tem que ser bem humorado’. Você só memoriza matéria de escola se o professor é divertido. A pessoa que é bem humorada vive mais. Às vezes o cara nem é bonito, mas fez você rir, você fala: ‘vou sair com esse moço, é engraçadinho, ele é divertido’. Então você descobre que o ter não é tudo. Você tem que ser. Ser positivo, ser de boa vontade, ser conivente, ser com amor próprio muito grande. Tem isso também. As pessoas têm mania de invadir o espaço um do outro e não se dão conta. Aprendi em casa com a minha mãe e levei pra vida isso: ‘as pessoas fazem com a gente o que a gente deixa, até quando a gente deixa’. O respeito é mútuo. Isso é o segredo da boa convivência. E sem essa pretensão de querer transformar o outro à nossa imagem e semelhança”, confidenciou Nany.
Por falar em respeito, Nany não tem a menor pretensão de ser reconhecida como defensora de qualquer bandeira. “Quando você está fazendo uma série de coisas, você não está pensando ‘estou fazendo história’… Não! Você está sobrevivendo! Você está fazendo por sobrevivência. Você age e reage às coisas por instinto, por sobrevivência, por possibilidade, por equação de segundos”, relata com exaltação.
Nany reconhece que o atual cenário para pessoas trans está muito melhor do que tempos atrás. No avião para Porto Alegre encontrou uma comissária de bordo transgênero. O fato de ela mesma ter participado de uma novela em horário nobre da televisão nacional é, de fato, uma melhora. Apesar disso, Nany alerta para o fato de que o Brasil é campeão no ranking de assassinatos de pessoas trans.
“Essa coisa de representatividade é um olhar que as pessoas têm sobre a gente. O fato é que eu sou uma privilegiada num país que mais mata por transfobia e homofobia. A média de uma trans no Brasil é de 35 anos. Por que? Porque não tem acesso a cultura. Uma pessoa sem cultura é uma pessoa sem nenhuma possibilidade sequer de ter uma melhoria de vida. A melhor herança que se tem na vida é a sua cultura. Até pra usar o dinheiro tem que ter talento e sabedoria. Sem cultura você não faz isso. Eu sinto que sou, realmente, uma sobrevivente, por vários fatores: por ser trans, por ter 54 anos e estar produzindo como eu tenho produzido, por trabalhar nas mais diferentes áreas e por ter passado sem me deixar capotar pela era Aids”, diz.
“Ser trans é você ter a certeza que você nasceu pra ser piracema. Você tem que ir contra a corrente.”
Ela segue: “É muito fácil falar de mim, por exemplo, que tenho uma vida artística. Agora quero ver dar emprego pra trans que é cabeleireira, que fez uma faculdade e quer trabalhar de secretária. Tá mudando? Tá. Mas tem que ter espaço pra trans que precisa trabalhar e se mostrar como pessoa física e cidadã que é. A mudança de nome é muito importante, é uma conquista que se tem hoje em dia. Demorei 18 anos para conseguir a mudança no meu nome. Então não tem essa de consciência. Você faz as coisas por sobrevivência. Eu falo que sou uma sobrevivente. Eu tive sorte de ter tido uma família que me moldou muito bem, investiu muito em mim e me preparou para estar vivendo. Quando você ganha respeito em casa o resto do mundo é seu quintal”.
Nany faz questão de cuidar muito bem desse quintal, fazendo apenas o que quer. Namora somente gente jovem: “com 21, 22, 23 até os 27, saiu da Malhação, muda o núcleo!”. Respeita e faz-se ser respeitada: “as pessoas fazem com a gente o que a gente deixa”. Fica longe do que chamou de desarmonização facial: “pessoal vai arrumar o rosto e é como se fosse uma casa velha que põe um banheiro novo com hidro. O banheiro não combina com o corredor, que não combina com a sala… no fim a casa está desconfigurada e só ele não percebeu. Prefiro ter a minha carinha assim mesmo”.
Cuida das unhas – porque fala muito com as mãos -, dos dentes – porque o sorriso/riso é frouxo – e da pele – porque sim. “E por que os óculos escuros com grau? Porque se tirar e pôr o normal de professora Helena, vira tia. Então assim eu viro meio pop star (risos)”.


Bela entrevista, belo texto
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