Foto: Camila Diesel

“E vá… vá no show! Tenta! Tenta com força!”, me disse Criolo ao final da nossa entrevista por chamada de vídeo, na semana passada, antes da apresentação do rapper em Porto Alegre no último sábado (23). Mesmo que o convite não tivesse sido tão enfático e que o nosso papo não tivesse me proporcionado algo inédito (que vou revelar ao longo deste texto), eu não teria perdido a oportunidade de ver esse grande artista no palco, que só havia assistido em 2016, no Opinião.

Desta vez, foi em um Araújo Vianna quase lotado que Criolo dividiu o palco com o DJ DanDan, acompanhado dos monstruosos músicos Bruno Buarque, Ed Trombone e Maurício Badé. O show apresentou músicas do álbum “Sobre Viver”, lançado em maio de 2022. A plateia pôde – além de cantar junto as novas músicas – relembrar as fases dos 15 anos de trajetória de Kleber Cavalcante Gomes, nascido em São Paulo, em 1975.

Basta conhecer minimamente a trajetória do rapper pra saber que a música dele traz reflexão, crítica, desabafo e dor. No show não foi diferente. Magistralmente, o músico transforma revolta em potência, mas também consegue trazer leveza e luz, reveladas em sutilezas e em entonações que afagam. Já na primeira música, Criolo cantou “Mesmo que andasse no vale das sombras, eu nada temerei” da faixa “Ogum Ogum”, que fecha o álbum mais recente.

Assista à entrevista na íntegra

Aliás o nome do disco é uma reflexão por si só. “Tem muita gente aqui no nosso território que não pode nem viver. Então a nossa luta é diária, desde o nascimento. Agora, como a gente pode transformar isso em energia motora para uma transformação com caminhos positivos? De que jeito a gente pode construir coisas positivas? De que jeito essa transformação que a gente tanto deseja pode passar por uma pavimentação de caminho para que esses medos e essas desigualdades fiquem cada vez mais longe? Esse álbum traz um tanto de fé, um tanto de esperança, um tanto de acreditar na capacidade dos nossos jovens, sabe?”, me explicou Criolo na entrevista que ele concedeu para o Set Guaíba, na última sexta-feira (22).

Depois desta resposta, lembrei que o nome do disco seria “Diário do Kaos” – primeira faixa – e questionei o motivo da troca. Ele suspirou. Balançou a cabeça. Olhou pra câmera em silêncio. Bateu em mim aquele receio de qualquer jornalista que se prepara para uma conversa como essa: minhas perguntas estão ruins ou ele não está gostando delas. Rapidamente veio o alívio desta que vos escreve. “Meus sobrinhos estão aqui. Quer ver?”, disse ele com um sorriso também levemente aliviado por ter tirado o véu do que o tirava a concentração. “Apareçam aqui! Venham dar oi!”, pediu aos jovens que, um a um, me cumprimentaram e disseram seus nomes. Conheci Juliana, Jéferson, Vitor e Duda.

“No meio do processo do disco… o que que a gente vai deixar de legado com o nome desse álbum? Que não tem saída? Eu vivo o caos desde o nascimento”, voltou a responder Criolo, que acabou sendo interrompido novamente. Agora era seu amoroso pai, que estava ali para levar a turma a algum compromisso. “Boa tarde, minha gente! Quem fala com vocês aqui é o Careca, tá? Só vim buscar os meus anjinhos”, falou carinhosamente o pai, aparecendo no cantinho da imagem. Um beijo entre os dois e um “tchau, pai. Amo vocês. Até já”.

Criolo retomou o raciocínio. “Então… o que que a gente deixa de legado para essa turma? Que não tem saída? A constatação é de quem acha que o Brasil tá de boa. Que bom que tem gente que não tá sofrendo. A questão não é essa. Não é uma competição de quem vai sofrer mais. Pelo contrário… que o maior número de pessoas passe a não sofrer. Que possa se equilibrar. Porque não existe revolução na desigualdade. (…) O álbum é um recorte de uma coisa maior. As músicas vêm para dar uma roupagem a sentimentos e histórias e energias positivas. Porque quem vem de sofrimento, quem vem das comunidades, das favelas, quem vem levando uma vida com amor, com dignidade, querendo transformação, querendo o bem para todo mundo, já sabe o que é o caos. Infelizmente. E todos os dias luta e mostra, para o restante da sociedade, solução. A gente já sabe o que é o caos. Agora a gente quer para além. Como é viver se não passar pela reflexão ‘e o sobre viver’, já que a gente só sobrevive?”.

Voltando a falar do show de sábado, foi intenso ver a tradução desta reflexão em melodia, dança, corpo, metais e tambores. No palco, Criolo desfilou seu disco novo, mas passeou por sucessos como “Não Existe Amor em SP”, “Ainda há Tempo”, “Esquiva de Esgrima”, “Subirusdoistiozin” e “Convoque seu Buda”. Duas horas depois, ele agradeceu ao público e saiu. Era hora de entoar o bis e de fazer o rapper voltar para delírio geral. O que parecia um protocolar “mais um” era, na verdade, momento de reunir os músicos em uma roda de samba para lembrar o que a gente já sabe: “meninos mimados não podem reger a nação”.

E não só isso. Para confirmar que o músico circula absurdamente bem entre diversos estilos. Do rap ao samba. Embasado e apoiado em suas referências mais antigas e enraizadas. Na entrevista, ele me disse que isso tudo é “fruto da panela de expressão cultural que é a favela, desse celeiro de mágica, de amor de música de cultura que é quando o nosso povo se encontra”. Ele contou que cresceu em um barraco rodeado de pessoas de diversos lugares do país, escutando música do Brasil todo.

“Então, isso guardou. E reflete agora, acontece agora. Lá em casa, o rádio ligado toda hora… Sempre em notícia, mas sempre tinha uma parte musical ou alguma coisa. A gente estava sempre escutando tudo, mesmo que eu não entendesse. E naquela época – isso era 80, 81, 82, 83 – havia uma preocupação com música. Qualquer reclame, qualquer chamada de programa de rádio, qualquer chamada para um patrocinador, tudo tinha uma orquestração. Tudo tinha uma preocupação musical para essa construção imagética que o rádio oferece. Isso tudo também me influenciou. E a gente vem de um período, também, de dramaturgia brasileira, da novela brasileira com grandes temas. Isso era trabalhado massivamente, não só na TV mas no rádio também. Só que havia canções de tirar o fôlego. Então acho que tudo isso, todo esses esmero do rádio… eu costumo falar sempre: o rádio é imbatível. Pode inventar o que for. Rádio é rádio”, lembrou.

Ele também disse que foi impactado pela troca de escola, no segundo grau, quando foi estudar na parte alta do bairro: “Costumo dizer que o ambiente do colégio Ester Garcia tem total influência em tudo o que eu faço hoje… o quanto a escola é importante, o quanto a construção cultural que não só é construída de dentro da escola para fora, mas a construção cultural que está no entorno da escola e entra. Também provoca uma transformação”.

Tudo o que vivemos nos impacta. Mesmo que a gente só perceba anos-luz dali, cada pequeno acontecimento nos transforma um pouco. Diferente dos grandes acontecimentos que nos dilaceram. Esses acabam sendo mais evidentes. No caso do Criolo, a dor da perda da irmã, em 2021, fica explícita em algumas respostas da entrevista. Quando cita as músicas “Cleane” e “Pequenina”, por exemplo, ele está falando sobre ela. Cleane Gomes, a irmã caçula, foi vítima da Covid-19 aos 39 anos. Se você, leitor, seguir até o fim desta publicação, verá a transcrição do papo que tive com ele e poderá perceber, também, que não perguntei sobre isso. Sinalizei o assunto no roteiro prévio, mas não perguntei. A resposta já estava ali. Nas entrelinhas. A resposta está nas letras. Nos clipes. Na voz. No olhar.

Foto: Camila Diesel

De posse de todas essas informações, depois de ter ouvido atentamente aos pensamentos do artista e entendendo um pouco mais sobre quem ele é, o show foi – para mim – a confirmação de tudo o que ele compartilhou comigo e com os nossos ouvintes. Fez sentido. De forma clara. Estava lá.

Confira a entrevista:

CAMILA DIESEL: Algo que me chama a atenção quando assisto ou leio entrevistas é a referência ao tempo entre o lançamento de um disco e do anterior. No teu caso, são cinco anos entre o “Espiral de Ilusão” e o “Sobre Viver” são cinco anos. Sempre rola essa coisa que eu acho meio estranha de chamar de hiato. Quando a gente fala de arte, me parece muito relativo. Como tu lidas com o teu tempo?
CRIOLO:
Eu acho que é muito olhar do outro, né? O outro acaba descrevendo o que ele sente da gente. Para muitos é um hiato. Para outros é o natural de ser. E aí, nisso estudo, cada um tem um olhar, né? O olhar da necessidade de continuidade de trabalho. É o olhar da importância de tentar continuar a tecer algo que possa contribuir com todo mundo, com esse seu contemporâneo. E, às vezes, é só algo que não se explica porque a vida é um todo para além disso também. Embora minha vida faça todo sentido com música, é um tanto para além e a gente vai devagarinho. Mas eu fiquei um tempão mesmo sem escrever nada. E não que eu não quisesse, mas também nunca forcei. Então, eu não sei te descrever o que que foi isso tudo, mas a gente vai indo.


DIESEL: Tem também a questão da indústria musical, que, como as redes sociais, nos deixam sempre na necessidade de lançar, de trazer coisas novas, de trazer material inédito. Como é a tua relação com a internet, com o ineditismo?
CRIOLO: Não tem, né? A partir do momento em que você apareceu da primeira vez, não tem mais ineditismo. Agora, tem os sentimentos inéditos que te visitam, que fazem com que coisas novas aconteçam, mas é muito pessoal, muito dentro. Eu acho que é muito do que se constrói nesse espaço-tempo e para além de você… porque a gente é só um fragmento disso tudo né? A gente é uma coisa muito ínfima. A gente é um micro recorte de uma coisa muito maior que é a arte do Brasil. E aí talvez o ineditismo possa vir de um jeito diferente desse pulsar coração, mas a gente só sabe vivendo, respirando isso devagarinho… a gente vai indo.

DIESEL: Em que momento da tua trajetória como artista “Sobre Viver” se posiciona?
CRIOLO: É bem diferente, viu? Bem diferente de tudo… o jeito como ele foi construído. Vem de uma parceria de muitos anos com DJ Dandan. Desde o comecinho dos anos 2000 vem essa parceria com Dan Dan, amável mestre. Em 2006 teve “Ainda Há Tempo”. Depois, de 2010 para 2011, começou uma parceria de amizade, amor, música e muito trabalho com Daniel Ganjaman, Marcelo Cabral e a Beatriz Berjeaut. Sempre tudo muito intenso. Aí tivemos o “Nó na Orelha”, “Convoque Seu Buda” , “Espiral de Ilusão”, o especial em homenagem a Tim Maia – com a querida, amável, incrível e espetacular Ivete Sangalo – e tantas outras histórias de tantos projetos especiais e tantas coisas incríveis com tantas trocas de tantos jeitos em tantos países… E agora esse álbum vem também com a energia do Daniel e do Marcelo, mas de uma outra forma, de um outro jeito. Houve um encontro muito incrível com Topkillaz. De um modo muito natural, coisas foram acontecendo. Teve o single “Sistema Obtuso” – eles fizeram uma coisa linda -, depois uma música chamada “Cleane”, que é muito importante para mim. E aí, de modo natural, fui retomando essa coisa de escrever um tantinho mais. Já tinha passado um ano de pandemia e a gente começou a trocar mais, a trocar mais, e aí vem esse esse disco. Então eu nem sei te falar o que que é, que lugar que ele tá. Só sei que é diferente. Cada um tem o seu jeitinho mesmo, mas esse é bem diferente.

DIESEL: E o momento que tu vives também influencia?
CRIOLO: Ah sempre, né? Isso aí sempre. Isso aí muito sempre muito. E aí tem essas pessoas incríveis do lado dando um suporte para que essas ideias virem música, para que essas rimas, esse solfejos tenham algum tipo de construção mágica, né? Eu acho que é muito dos sentimentos nossos, né? A “Sétimo Templário” descreve muita coisa… muito forte disso que a gente está vivendo nesses últimos três anos e meio. A música “Pequenina” também descreve uma coisa muito particular da minha família, né? Os sentimentos da minha mãe, sobretudo sentimentos e emoções da minha mãe em relação aos filhos. É uma música muito forte para mim. A canção com o amável, querido e tão especial Milton Nascimento [Me Corte Na Boca Do Céu A Morte Não Pede Perdão] também descreve o tanto do que é esse abismo social em que a gente está mergulhado e afundado. Cada canção tem uma coisa muito especial. “Diário do Kaos” tem muito esse esse rap que me estendeu a mão há 30 anos, né? Já estou fazendo 30 anos de caminhada… então esse rap que vem para além de muita coisa, vem para essa fase adolescente, eu escrevendo com 11, 12, 13 anos de idade. Então tem um tanto de mim, de cada recorte, mas de um jeito que a gente não esperava. Porque como eu te falei no começo do nosso papo, eu nem imaginava que eu ia voltar a escrever mesmo, a ponto de fazer um novo disco, sabe? Então é bem diferente. É bem especial e eu gostaria muito que vocês escutassem. Quando tiverem um tempo, quando estiverem sintonizados aí na rádio, quando estiverem em casa, quando estiverem indo pro trabalho, voltando do trabalho, em família, no rolê sozinho… se vocês puderem visitar o álbum “Sobre Viver”, tem um tanto do meu coração ali.

DIESEL: Eu imagino que essa seja uma pergunta bem recorrente, mas eu quero falar sobre esse título. A fonética traz duas possibilidades: que é de compreensão que é ‘sobreviver’ e ‘sobre viver’. O teu disco é mais sobre sobreviver ou sobre a necessidade de viver?
CRIOLO: Eu acho que ele descreve um tanto do quanto o nosso povo está sobrevivendo e não vivendo. Não nos é permitido viver. Não nos é permitido ter as delícias do que é aproveitar a vida ao máximo, com toda a beleza que essa frase carrega. A gente vende as nossas horas para fazer acontecer um mínimo de construção de dignidade para as famílias terem um sustento, terem o que comer, terem onde dormir. Enfim… o básico para a construção de um ambiente de dignidade para o trabalhador brasileiro não acontece. Isso acaba refletindo também no jeito como você é obrigado a levar sua vida. Aqui, no nosso território, a grande maioria da população está sobrevivendo e, quando veio a pandemia, eu percebi que muitas pessoas começaram a se dar conta de como são as diferenças aqui. E começaram a entender a importância da vida. A gente ficou com muito medo. Medo de perder as pessoas que amamos, medo da gente ir embora e deixar aqui alguma coisa no meio do caminho. E aí, algumas pessoas se deram conta de que estão com medo de perder a vida, mas tem muita gente, aqui no nosso território, que não pode nem viver. Então a nossa luta é diária desde o nascimento. Agora, como a gente pode transformar isso em energia motora para uma transformação com caminhos positivos? De que jeito a gente pode construir coisas positivas? De que jeito essa transformação que a gente tanto deseja pode passar por uma pavimentação de caminho para que esses medos e essas desigualdades fiquem cada vez mais longe? Esse álbum traz um tanto de fé. Um tanto de fé, um tanto de esperança, um tanto de acreditar na capacidade dos nossos jovens, sabe?

DIESEL: Como tu enxergas o momento do rap nacional? Claro que tu estás inserido dentro desse mercado, mas como que está o rap hoje e pra onde o rap vai?
CRIOLO: Ah… são tantas as vertentes e são tantas as subdivisões que a gente nem dá conta. Nesse momento, em algum lugar do planeta, está nascendo uma outra subdivisão do rap, dessa árvore musical. Essa árvore gigante musical é uma copa de uma outra árvore que se chama Hip Hop. São muitas subdivisões, são muitos jeitos de construir a comunicação. Existem muitos movimentos musicais dessas subdivisões que levam em consideração o modo que se canta, como se canta, a estética e a estrutura que embala esse texto, ou seja, como essa construção de beat, de instrumental, de pensamento, de tema melódico… mas também o ambiente desse grupo de jovens que se reúne. Ele vai para além, extrapola. Então, eu sou muito curioso, eu quero viver muito para ver e aprender até onde mais vai essa coisa linda, essa energia tão incrível chamada rap que me visitou aos 11 anos de idade e nunca mais me abandonou… e me ensina a cada dia. Porque rap é uma energia de alma. É uma força… é um jeito de viver, é um jeito de se enxergar no mundo. Vai para além.

Foto: Camila Diesel