
Ainda me lembro de quando meu irmão Felipe chegou em casa com seu mais novo investimento das mesadas semanais: um CD do Pato Fu. Deve ter sido por volta de 1995 e, no auge dos meus não mais de dez anos de idade, Gol de Quem? foi responsável pela minha iniciação no rock nacional. Vinte e cinco anos depois, tendo a banda mineira feito parte de distintos momentos da minha vida, tive a honra de entrevistar Fernanda Takai. A pauta foi o novo disco Será Que Você Vai Acreditar?, que chegou às plataformas digitais no início de julho.
“Se alguém te contar que a Terra é plana e não dá pro espaço viajar, será que você vai acreditar?”, diz um dos refrões da primeira música do disco. Quase como um lamento, ela canta: “Não pode ser / Onde é que eu errei? / Como é que isso foi acontecer?”. O clipe da canção traz imagens da Nasa, que mostram a Terra e toda a sua bolotice, como me disse a cantora na entrevista para o Set Guaíba. Um vídeo que rendeu o maior número de comentários, muitos deles odiosos, da história de Takai.
“Quando o John [Ulhoa] escreveu Terra Plana e deu de presente para a nossa filha, foi pensando nessa situação que a gente tem hoje de descrédito da ciência, um negacionismo. Chegamos em vários momentos como humanidade e alguns não superaram esse conceito de que claro que a Terra não é plana, gente. Quando a gente faz uma música assim, é uma preocupação chamando as pessoas para pensarem sobre o assunto, inclusive os terraplanistas. Eu não tô ofendendo de forma violenta nenhum deles. Faço um grande questionamento sobre tudo isso que vem acontecendo especialmente no nosso país, de uma forma muito bruta”, disse a artista.
Ela explicou que a música também fala sobre uma preocupação com o que está por vir. “Que mundo que vai ficar para essas pessoas mais novas viverem? Será que elas vão acreditar em tudo? Será que realmente a mentira vai continuar vencendo a verdade e a ciência? É uma música de carinho, cuidado e lembrança”, comentou.
O disco foi lançado em meio a uma pandemia e é até meio óbvio que sejam melancólicas as interpretações das letras e suas mensagens. As canções, porém, já haviam sido escolhidas entre o fim do ano passado e o início de janeiro. “Houve uma intensa sintonia entre o que eu tinha escolhido e os temas propostos no disco com o que veio a acontecer. São coisas inexplicáveis. E isso acontece de vez em quando. Você começa a fazer um disco e só vai perceber o todo depois que você está fechando as últimas canções e vai ouvir todas em sequência. Certamente essa nossa sensação de estarmos desprotegidos e ao mesmo tempo confinados faz com que a leitura de várias músicas mude. Isso ficou intensificado. Tem coincidências muito grandes. Acho que a maior delas talvez seja a música do Nico [Nicolaywski] que tem na letra, inclusive, um verso que fala em lavar as mãos. É uma música que foi composta há muito tempo e parece que foi feita durante a pandemia”, me contou.
Ela se refere a Não Esqueça, que me fez marejar os olhos nas primeiras vezes que ouvi. Uma mistura de saudade da família, de medo em razão das incertezas, de melancolia e ao mesmo tempo de amor e esperança.
“É um momento de muita emoção contida o tempo inteiro. E a arte serve pra gente poder dar vasão a isso. É bom a gente ter a capacidade de se emocionar com uma música, vendo um filme ou lendo um livro. A gente encontra ali um paralelo com a nossa própria vida. E ajuda a pensar, a organizar o pensamento e a liberar um pouco o peito que fica muito fechado nesse momento”, revelou Takai.
Outra faixa que merece destaque é Love is a Losing Game, de Amy Winehouse. Com o uso de elementos brasileiros, Takai repaginou essa grande canção da artista de vida breve. Diferente da original que traz o peso característico e a dramaticidade habitual de Amy, a versão ficou mais leve.
Versões e regravações não são novidades no repertório, já que a artista faz questão de lembrar dos talentos que já se foram. “Se as pessoas não falarem sobre a Amy e não regravarem ou mostrarem a música dela para as gerações mais novas, cria um buraco entre quem conheceu e sente saudade da música dela e pessoas que não ouviram. Por isso eu acho interessante o Pato Fu e o tanto de público muito jovem que acompanha por causa de Música de Brinquedo… acho legal que, talvez, eles vão conhecer a Amy através de uma gravação minha e vão atrás da música. Como foi o Música de Brinquedo… a gente gravou Frevo Mulher, gravou Severina Xique-Xique e os pais mostram a música original pra eles. É legal trazer de novo essas grandes canções de grandes artistas que não estão mais aqui, né?”, disse.
Sabe o que também é legal? Que existam grandes artistas, como Takai, que seguem fazendo um grande trabalho por aqui. E que essas grandes canções cheguem aos pequenos, como chegou àquela menina Camila, de não mais de dez anos, fortemente influenciada pelo gosto musical do irmão. Acho que ela duvidaria que a bolotice da Terra estaria sendo questionada, mas certamente ficaria agradecida pela influência e orgulhosa de saber que a Camila de pouco mais de 30 entrevistaria aquela artista do CD.
