
Se a divergência de ideias publicadas em redes sociais já foi capaz de dissolver relações, uma viagem de ônibus do Brasil até o Uruguai com passageiros que pensam diferente poderia ser catastrófica. Com um desfecho surpreendente, foi o que Caco Ciocler fez em Partida, um documentário com pinceladas ficcionais que traz a jornada de uma atriz que decide se candidatar à Presidência da República em 2022 e embarca para o país vizinho para tentar passar a virada do ano ao lado do ex-presidente Pepe Mujica. Com ela, pessoas com ideais destoantes. Um deles é Léo, um empresário com posições políticas bem diferentes das dela, que acaba se tornando o maior parceiro de jornada.
O longa, que chegou ao público nessa semana, foi gravado logo após as eleições de 2018. Como narra Ciocler, o país mostrava claros sinais de divisão, de ferrenhas discussões e de brigas intermináveis. Dois anos depois, o filme não perdeu a temporalidade. “Sempre achei que a gente precisasse correr com o filme porque ele foi feito em um momento muito específico e poderia envelhecer a qualquer momento, dependendo do que acontecesse com esse governo. Mas felizmente pro filme e infelizmente para a história, acho que o país continua dividido, continua rachado, intransigente e desgovernado. As pessoas continuam precisando voltar a conversar, voltar a escutar”, disse o diretor para o programa Set Guaíba da Rádio Guaíba.
Sem roteiro e sem texto pré-definido, Partida foi concebido da forma mais espontânea possível. O importante era que o elenco emprestasse personagens para as figuras em cena na busca por ressaltar discussões. Um grande jogo de improvisação, calcado no repertório pessoal de cada ator. O espectador pode se perguntar, em algum momento, onde começa a ficção dentro da realidade. A dúvida também pode surgir ao tentar identificar o que é utopia dentro do que pode realmente se concretizar. O filme perpassa a perspectiva de um ideal, mesmo que utópico. “Nesse momento nós estamos mais sensíveis à questão dos sonhos, de lutar pelo que se acredita. Eu acho que tudo isso ressignificou o filme”, disse Ciocler.
Ressignificar também acaba sendo o mote da vida em tempos de pandemia, principalmente para quem trabalha com arte, já que a atividade pressupõe aglomerações. “Arte é como água. Você não consegue segurar. Ela dá um jeito de achar um caminho. A gente vai dar um jeito. E por outro lado, acho que a pandemia trouxe de volta para as pessoas a necessidade da arte. A gente estava vivendo num mundo muito enlouquecido, muito corrido, de muitas certezas, um mundo meio binário. A gente estava indo pra um lugar muito estranho pra arte. A arte não sobrevive nas certezas. A arte justamente floresce nas intersecções entre as certezas, fala do subjetivo, fala do medo, da nossa finitude. Forçosamente, por causa da pandemia, as pessoas estão voltando a entrar em contato com essa subjetividade, com a sua solidão, com seus medos, com a finitude. E, por isso, sentindo necessidade de arte”, disse.
Para Ciocler, a grande questão a respeito do isolamento não é a ausência do que fazer, mas a necessidade de repensar a própria existência. A pandemia deu oportunidade para as pessoas se depararem com a própria pequenez, com as incertezas e com urgência de projetar existências menos banais. E então, aparece a arte.
