
“Sou uma mulher, professora, pedagoga, mãe do Erick de 11 anos, rapper, ativista, produtora da cultura hip hop – e de tudo o que ela me oferece, tudo o que ela me dá”. Assim definiu-se Negra Jaque, em uma conversa descontraída, mas com muita profundidade, durante o Set Guaíba do dia 5 de março. Não precisa muito para perceber que ela é muito mais.
Jaque chegou chegando ao estúdio da Rádio Guaíba, com uma energia e uma força impactantes (positivamente, claro!). Junto com o sorriso largo e relativamente fácil, vem a carga e a potência que a moradora do morro da Cruz precisou desenvolver ao longo dos anos para não ser engolida pelo sistema opressor.
A vida pessoal permeou o bate-papo do início ao fim. Falou sobre a carga de ser irmã mais velha e se tornar referência após a morte recente dos pais. Falou sobre a mudança repentina na vida, em 2012, quando saiu da condição de “recatada e do lar” após uma separação que a fez se deparar com a realidade de viver em uma casa sozinha com uma criança pequena. Falou sobre o ingresso na universidade através do Prouni e largou um sonoro uhuuu! quando contou que só foi possível pela existência de cotas.
Foi a partir de um feliz encontro com a cultura hip hop em 2006, durante um curso de educação popular – onde estudou Paulo Freire, as manifestações e organização da juventude pelo mundo – que foi se formando a personalidade de Jaque. Não demorou muito para ingressar em grupos e dar o passo desafiador de assumir o próprio projeto. “Em 2012 eu decidi ‘sou Negra Jaque e vamos encarar o mundo’. Comecei a escrever e não parei mais. Participei da Batalha do Mercado onde fui campeã da edição de julho do ano de 2015 e ali comecei a gravar o disco”, relatou ela, que foi a primeira mulher a vencer a batalha. Depois disso, veio o segundo disco, participações com a Rafuagi e a Ultramen e outros trabalhos.
O ativismo de Jaque enfrenta paredes a escalar. A do preconceito é a principal: “acho que ainda uma galera tem uma resistência muito grande sobre o que a gente preserva da cultura hip hop. Em todos os movimentos tem gente que não faz legal. Tem gente que incita a violência, tem gente que objetifica mulheres… só que o hip hop é um movimento de periferia. É um movimento de negros, então tem uma tripla resistência e ainda é muito difícil”. A resposta foi à minha pergunta sobre a realidade da cultura na capital dos gaúchos, em que ela também cita que Porto Alegre está longe de oportunizar acesso igualitário a todos os artistas e integração de todos os gêneros.
Jaque explicou que se faz necessária a compreensão da diversidade. Na vida e no rap. Cresceu ouvindo nomes como Ndee Naldinho, Racionais MC’s e RZO, semelhantes ao hip hop que iniciou nos Estados Unidos: que luta por direitos civis. Ainda que se identifique com o rap que chamou de contestador e briguento, a cantora reconhece que é natural que existam movimentos que falem apenas de sexo, violência e drogas, seja no rap ou no funk. Porém, se coloca no papel de atuante para buscar diminuir mazelas.
— Pra que a juventude tenha outras coisas pra falar que não sexo, drogas e violência. A gente preza leitura, conhecimento, que eles entendam de arte moderna, por exemplo. Que a gente não fale só de pichação. Vamos começar na pichação, sim, que é uma manifestação. Mas vamos falar de arte. Vamos falar de Picasso, vamos falar de outras pessoas — defendeu Negra Jaque.
A diversidade também esbarra nos altos recursos financeiros exigidos para gravações e compra de equipamentos. Tal fato, segundo ela, tem tornado o hip hop gaúcho elitizado e branco. Por isso, é de suma importância que nomes como Baco Exu do Blues, Emicida e Criolo tenham destaque na cena nacional.
— Eles falam coisas que a juventude negra tá passando… a juventude negra tá morrendo e eles estão falando disso, tão batendo nessa tecla, falam sobre beleza da mulher negra, que a gente não ouvia tanto nas letras. Eu acho maravilhoso. (…) Tá faltando mulheres negras, ainda, na ponta. Mas isso é uma realidade das mulheres do mundo, negras ou não negras. A gente está precisando de um espaço feminino e que produtores enxerguem isso como uma necessidade fundamental. Mas, sim, eles têm o papel de elevação da autoestima de uma juventude que tá morrendo todos os dias — disse.
Nesse momento, citei trecho de uma música do Baco: “A partir de agora considero tudo blues / O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues / O funk é blues, o soul é blues / Eu sou Exu do Blues/ Tudo que quando era preto era do demônio / E depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de Blues”. A voz das duas embargou. Porque é real.
E a resposta dela? “A gente tá com uma galerinha crescendo. Meu filho tem onze anos. Ele curte muito Emicida, ele curte Baco, ele curte Djonga, porque eu apresentei isso pra ele… e alguém dizer pra uma criança que tá ouvindo tudo isso que Jesus nasceu no Egito e que foi única criatura que nasceu branca de olhos azuis? Desculpe, pessoal, tá? Mas eu tenho que entrar nesse debate aí. Sinto muito. Mas é isso, entendeu? A gente tá debatendo isso de ‘quem conta a história? Onde foi feita essa história?’. O berço da música é a Africa. É o continente africano, que importa coisas, que foi saqueado durante muitos anos. A base da escrita é negra. A escrita não é egípcia? Egito é onde? Na África. Então a gente tá debatendo essas coisas, cara. Não falo com o conhecimento de pessoas que estudam. Eu tenho muitos amigos que são historiadores e tem mais propriedade pra falar dessas coisas. Mas são as perguntas que vão movimentar o mundo. As perguntas que estão fazendo a gente se mover pra refletir sobre isso, sobre quem conta a verdadeira história. Falar de Cleópatra, essas coisas… Então a gente tá recontando essa história. Do nosso jeito”.
Jaque falou sobre a estrutura que ignora a existência, a história, a cultura negra. Começa “pelos lápis de cor da pele que não são da minha pele”. Depois, na adolescência, o sistema diz “que nosso cabelo é feio, que nosso corpo é feio, que nossa bunda é grande, que nosso peito é isso e aquilo”. Não tem capa de revista, não tem maquiagem… coisas que podem parecer básicas e supérfluas para quem ainda não parou para pensar na necessidade de ver-se representado e, mais do que isso, do quão nocivo é ser ignorado.
— Em que momento que essas mulheres se cuidam? Em que momento que essa estética e esses produtos vão nos refletir?”, questiona, lembrando que existe um vasto mercado consumidor, que precisa vender produtos de acordo com todas as peles. “Sem nós, sem o nosso dinheiro, o mercado não é nada. A gente também quer se sentir linda. A gente está falando de autoestima, de beleza, de uma beleza natural, de uma beleza que é negra” —finalizou a ativista.
“A gente precisa se ver médico, a gente precisa se ver artista, a gente precisa se ver em todos os espaços. Por isso a gente fala de uma grande taxa de depressão em mulheres negras e de jovens negros. A juventude, quando não morre por arma de fogo, se suicida, cara. Isso é um teto. É não se amar, entendeu? A que ponto a gente chega de não querer mais viver? Então a gente precisa, desde pequeno, dizer “tu é linda, tu é forte, tu é inteligente”. Todos os dias. Todas as pessoas do mundo. Principalmente as negras em função do sistema da sociedade que a gente tem.” – Negra Jaque
Que aula, Negra Jaque!
