
“A vida humana já é um teatro. As pessoas – homens e mulheres ‘naturais’ – também são atores e atrizes que esqueceram que estão atuando”. A frase é da Atena Beauvoir, em uma conversa descontraída e cheia de informação e questionamentos que tive com ela durante um Guaíba Fim de Semana, na Rádio Guaíba. Uma entrevista esclarecedora e ao mesmo tempo capaz de tirar da zona de conforto até os que se consideram desconstruídos.
Falando em desconstrução, Atena nos traz a seguinte reflexão: “Aceite que a sua existência não é sua. Porque você não a construiu. Só é seu aquilo que você constrói. Aquilo que você assina em baixo. Seu nome você não assinou em baixo. O seu corpo você acha que é seu, e vai ser sempre essa metamorfose ambulante, que não é nem sua metamorfose, nem sua ambulante. Você só tá vivendo aquilo”. E ela pode falar com propriedade sobre construir-se.
Atena Beauvoir é educadora, filósofa, palestrante e escritora transexual. Já foi premiada por sua atuação em defesa e promoção dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Rio Grande do Sul. Durante a entrevista ela narra sobre como a obra da qual é autora fala da própria construção enquanto Atena – que já dura três anos – e do entendimento de construção e desconstrução individual do leitor. Seu livro mais recente, “Libertê: poesia, filosofia e transantropologia”, reúne 25 poemas que orbitam os temas identidade, desejo e existência. É, segundo a própria, sobre a construção humana, sobre a transgeneridade das pessoas transsexuais, travestis, principalmente as mulheres trans. O dinheiro arrecadado com a venda dos livros é investido 100% em sua transformação de gênero.
Atena defende que escrever uma obra é construir uma existência literária e que, enquanto autora transexual, já tendo conseguido legalizar-se documentalmente, trabalha para entender o que é essa nova existência. “E a literatura também faz a produção dessa existencialidade humana. Questiono muito sobre essa minha existência. Então, por exemplo, quando o leitor pegar a obra e ler, ele também vai poder questionar sobre a própria existencialidade e o quanto ele construiu a si ou foi construído”, disse.
E os padrões? Ah os padrões…. “Quiçá você sabe onde começa a vontade dentro de você e onde termina esse desejo interno de ser você, o que é ser você. Se torna um fantoche desse teatro. Quando que seu pênis disse que você é homem? Quando a sua vagina disse que você é mulher? Quando que você viu um gene ou um cromossomo pra dizer que não sou uma mulher. O que você espera? Quantas outras mulheres não têm útero, não tem seios? O que é na real ser esse homem, ser essa mulher? Será que não está na hora de abrir e pensar que a humanidade pode sim ter mulheres com vagina, homens com pênis, homens com vagina e mulheres com pênis? Será que não tá na hora de a gente entender esse tipo de critério, estabelecido e criado por nós, fundamentado por nós? Tu não abre uma célula e vê lá escrito célula. Não abre um átomo e vê lá escrito átomo. Tu abre a realidade humana de acordo com a leitura que você faz. Mas pra isso você tem que estudar, tem que dialogar, tem que ler, tem que buscar as fontes. Nada de senso comum, nada de uma mediocridade epistemológica que diga ‘é assim porque eu aprendi assim’. Meu amor, quer discutir se eu sou uma mulher geneticamente mesmo? Me defina DNA, cromossomo e cromatina. Quando você fizer isso, a gente conversa seriamente”, provocou Atena.
Atena trouxe um dado: 97% das pessoas trans trabalham em prostituição. “A grande questão é você entender que existe uma sociedade cisgênera que entende que aquilo é errado. Desde a família, que deu o nome, deu o corpo, deu a existência… e quando você diz que não quer mais esse nome, esse corpo, essa existência, então você não faz mais parte dessa família”, disse ela, comentando ainda sobre a prostituição de menores trans em Porto Alegre. Atena fez um alerta: “Quem financia isso? E o mais grave é que as escolas e as pessoas que dizem que não se devem discutir gênero na escola, são as que estão, sim, fomentando isso. Porque não permitem um espaço de consciência para que essas crianças não estejam numa esquina”.
Transcrevi alguns trechos imperdíveis do bate-papo. Confira!
Atena Beauvoir: “A grande diferença, Camila, talvez seja o quanto que nós temos autonomia nessa construção. As pessoas transgêneras quando nascem, quando recebem da natureza, da existência, da família, um corpo, esse corpo por ter um órgão x, y, z, por ter uma definição genética x, y, z, ele ganha um caráter de existencialidade de gênero. Ou é homem ou é mulher. Mas em nenhum momento a ciência declara, numa autoridade científica, que há realmente essa prioridade de você dizer que é um homem quem tem pênis ou uma mulher que tem a vagina. As pessoas transgêneras, desde décadas afins, têm esta coragem existencial de lidar com uma autonomia, obviamente, quando têm essa possibilidade de ir contra essa corrente mundial – que não é no Brasil somente, ainda que o Brasil tem esse índice de matar pessoas transgêneras todo o ano e essa violência não se justifica. As pessoas morrem todos os dias, mas ninguém morre por construir a própria existência. E essa é a questão -. Então, sim, todos nós estamos construindo uma existência, mas a pergunta que a gente faz geralmente para as pessoas cisgêneras, que são as pessoas que aceitam a identidade – homem ou mulher – de acordo com o seu corpo, a gente questiona o quanto você realmente tem autoridade. Todas as pessoas transgêneras decidem o próprio nome, decidem a própria formatação de gênero, de estilo, de performance do corpo, pela questão da química, dos hormônios, elas constroem também uma identidade bioquímica do próprio corpo e isso é muito existencialista por trazer esse conceito de liberdade, de autonomia. A gente tem uma frase que a gente colocou num livro de filosofia que a gente está escrevendo pro ano que vem que é assim: ‘viver não é respirar. Respirar também as plantas o fazem. Trocas de gases. É necessário, para viver, existir’. E existência que se faça autonomamente. Tem que se ter autonomia para construir essa existência. Porque se não, no final das contas, tu vai dizer que é o destino, a estrela, a má sorte, deus, os orixás, quem for. Então a gente dialoga e conversa sobre a responsabilidade. As pessoas não querem ser responsáveis pela própria existência. Então é melhor dizer que é a família, ‘a minha personalidade é assim por causa do meu nome, por causa do meu signo’. Não. É porque você é assim e você pode mudar isso. A partir do momento em que você tenha essa centralidade autônoma na sua existência”.
“Não é fazermos um desmembramento lego do corpo. É um desmembramento dos nossos conceitos sobre o que seja a existência humana”
Atena: “Tem sido muito muito muito sofrido, porque o preço da liberdade existencial é o preço de você rasgar a história do passado que não responde. Um outro conceito que a gente coloca no nosso livro de filosofia futuro é a questão da construção de uma existência que parte de uma existência inexistente. Pessoas transgêneras há em todo o mundo, em toda a história da humanidade, em todas as nações. E elas partem do princípio que não podem mudar o seu gênero. Têm pessoas que, com cinco anos de idade, demonstram essa identidade oposta ao seu corpo e ao seu gênero… pessoas com 15, com 20, com 50 anos o fazem. E quando elas fazem, uma pessoa de 50 anos tem que perceber que a sua existência de 50 anos talvez nunca tenha atendido a sua existencialidade interna. E isso é muito íntimo. Vai ao encontro de um desejo, vai ao encontro de uma identidade que é a ideia de si. Vai ao encontro do potencial de liberdade desse indivíduo. Então a gente tem que ter talvez um outro conceito sobre humanidade. Não é fazermos um desmembramento lego do corpo. É um desmembramento dos nossos conceitos sobre o que seja a existência humana. Então, pra mim, por exemplo, eu tive que redefinir, reconfigurar todo o meu passado de 25 anos até o momento em que eu digo ‘agora vamos ter que partir do zero’. E partir do zero já como uma mulher adulta como é Atena nascendo da cabeça de Zeus, como uma jovem guerreira”.
“O tempo passado, presente e futuro, nos faz acreditar que as coisas podem mudar, mas a partir do momento em que individualmente cada um assuma a sua educação”
Atena: “Não existe a possibilidade de eu influenciar potencialmente a estrutura. Existem duas coisas que a gente entende e confia muito que mude as coisas. Primeiro é um processo de educação. E significa eu, primeiramente, fazer essa reconfiguração de mim mesma. Eu também tenho processos de estar numa sociedade que é especialmente privilegiada às pessoas brancas. Então, eu sou estruturalmente racista. Eu tenho essas problemáticas. Enquanto eu tinha cinco anos, numa família, com histórico branco, com descendência branca, com cinco anos de idade eu podia escolher o que eu ia ler e não o que eu ia comer. Então, como você vai simplesmente dizer ‘eu não tenho que me educar nesse sentido’? Tenho que, prioritariamente, fazer o sentido de entender o que é ser racista numa sociedade que privilegia pessoas brancas e como que isso define todo o meu trabalho. Eu não quero que as pessoas leiam o meu trabalho e digam ‘isso aqui vai mudar o mundo’ e nem dizer ‘eu quero as pessoas mudem’. Eu quero que as pessoas façam o que elas quiserem fazer da obra. E a segunda coisa: eu acredito muito no tempo. O tempo é algo que é imemorial e não é divino, porque eu não acredito nessas divindades históricas. Mas é algo extremamente metafísico. O tempo passado, presente e futuro, nos faz acreditar que as coisas podem mudar, mas a partir do momento em que individualmente cada um assuma a sua educação”.
“Você é aquilo que você é, num sentido muito mais emocional, muito mais psicológico, muito mais de como você vê e estrutura a sua existência”
Atena: “Identidade é essa ideia de si. E acho que quando a gente fala de identidade vai muito além daquilo que você é, mas aquilo que você deseja ser. E isso não tem a ver, como algumas pessoas de uma ingenuidade epistemológica colocam, que ‘você não pode ser mulher, você não pode se homem, você não pode’… Você é aquilo que você é, num sentido muito mais emocional, muito mais psicológico, muito mais de como você vê e estrutura a sua existência. Ninguém é dono do querer e da vontade alheia. Independente de você dizer ‘você é um homem’, não anula a estrutura interna do indivíduo, que diz realmente o que ele é. E acho que essa é uma problemática humana em todas as nossas fases. A gente não tem uma definição exata de humanidade em todas as áreas. A gente não sabe o que é humanidade. A gente tá qui vivendo enquanto humanidade, numa cidade em sua profissão. Mas em nenhum momento nós temos um texto publicado sobre uma unidade do que é ser humanidade. Ainda que tenhamos várias linhas filosóficas, várias teses científicas, fisiológicas médicas, clínicas e afins, jurídicas, a gente não tem uma unidade. E aí a gente lembra do Nietzsche, que talvez isso seja a falta da tal verdade que nunca existiu. Não existe uma verdade sobre a humanidade. Enquanto a gente bater na tecla de que há uma verdade sobre o que é ser humano, a gente perde muito. Enquanto a gente está aqui debatendo que ‘não é homem’, ‘não é mulher’, existem pessoas no Maranhão e no interior de cidades que estão passando fome. Existem pessoas que estão sofrendo por milhares de circunstâncias e doenças e a gente está discutindo o que é liberdade ou não do indivíduo. Então vai muito além. O peso disso, como tu disse, é da hipocrisia, mas não da hipocrisia de fazer ou não fazer. É da hipocrisia de a gente pensar quem realmente estamos considerando válidos enquanto humanidade”.
“Libertê: poesia, filosofia e transantropolgia” está disponível para venda na livraria Taberna – R. Cel. Fernando Machado, 370 – Centro Histórico, Porto Alegre. Também está disponível na versão audiobook pelo YouTube, sob a voz da própria autora.

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